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"Kadiwéu no Mundo" transmite cultura indígena na França

Programação reúne conferência na UNESCO, exposição de grafismos, exibição de filmes, oficinas em escolas e desfile de moda

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Issel Chaia
Desfile de moda autoral acontecerá nos dias 29 de Setembro e 1º de Outubro em Paris. (Foto: Arquivo)

A comunidade indígena Kadiwéu, de Bodoquena (MS), protagoniza uma série de ações às margens do Rio Sena, em Paris. O evento Kadiwéu no Mundo acontece de 11 de setembro até 1º de outubro, na capital francesa, com foco na reafirmação cultural do povo.

Encabeçado por duas lideranças da etnia - Benilda Vergilio, da Aldeia Alves de Barros, e Samila Fernandes Maciel, da Aldeia Campina – o projeto traz à cidade a potência de uma cultura que se expressa pelo corpo, pelos traços dos grafismos e pela memória do território, que vão muito além de leituras "folclorizantes", convocando o público a ouvi-las como sujeitas de pensamento. 

A travessia desloca sentidos e devolve ao presente vozes historicamente silenciadas pelos arquivos, inclusive os da própria comunidade, por meio de ocupação de museus e espaços públicos, reafirmando o lugar de fala Kadiwéu.

Palavra insurgente na UNESCO

A primeira ação do Kadiwéu no Mundo foi a conferência realizada na UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), nos dias 11 e 12 de setembro, sobre o tema “Conhecimentos indígenas e mercados globais: melhores práticas para uma colaboração ética” em francês, português e espanhol. O encontro tratou de responsabilidade social e sustentabilidade para existir com pluralidade.

(Foto: Jade Chaia)

Organizada pela Delegação Permanente do Brasil junto à UNESCO, com apoio de Bem-Te-Vi Diversidade, Instituto Umbuzeiro e Projetos Angaí, a sessão propôs refletir sobre como integrar conhecimentos indígenas a modelos econômicos sem reduzi-los a “recursos”, garantindo às comunidades o papel de autoras e beneficiárias.

Países como Brasil, Peru e Marrocos apresentaram estudos de caso com exemplos de cooperação entre empresas e comunidades, baseados em respeito cultural, partilha justa de benefícios e responsabilidade ética.

Em suas falas, Benilda Vergilio e Samila Maciel ressaltaram que, para o povo Kadiwéu, o grafismo não é ornamento, mas pensamento em forma, cosmologia em traço. Denunciaram a hierarquia própria da visão ocidental que reserva ao “artista” o museu e ao “artesão” o silêncio.

(Foto: Jade Chaia)

Pelas linhas Kadiwéu, afirmaram, manifesta-se a memória coletiva, não a invenção isolada de um indivíduo. O reconhecimento, portanto, deve voltar-se à comunidade, guardiã do saber e responsável pela sua transmissão às gerações futuras. À noção ocidental de “autoria”, contrapõem a ideia de coautoria cósmica entre terra, corpo e ancestralidade.

Num auditório habitualmente marcado por discursos protocolares, a palavra Kadiwéu irrompeu para afirmar uma universalidade singular construída no diálogo.

Confira um trecho da participação das representantes da etnia durante conferência na UNESCO, veja a seguir:

A conferência também homenageou Alain Moreau, advogado franco-brasileiro e aliado histórico dos Kadiwéu, que por décadas acompanhou a luta pela defesa do território e dos saberes tradicionais. Seu testemunho de solidariedade — escutar, confiar e respeitar as necessidades — foi lembrado em Paris.

Grafismos como pensamento em traço

Integrada à Temporada França–Brasil 2025, a obra de Frutuoso Rocha apresenta-se como um campo de pensamento visível no espaço Le Temps des Cerises, em Issy-les-Moulineaux, de 13 a 28 de setembro.

(Foto: Alice Arida)

Nascido em 1950, Frutuoso cresceu entre narrativas, rituais e memórias que se tornaram traço. Em criação contínua na aldeia, aos 75 anos, utiliza tintas de jenipapo e pincéis de penas recolhidas, ferramentas para estender a terra e o corpo no mundo. Herdados de anciãs e anciãos, os grafismos, presentes na pintura corporal Kadiwéu, ganham novas cores e renovam a tradição.

As obras adensam memória e resistência no traço, simultaneamente íntimo e coletivo. Para além do ornamento, vê-se ontologia em linha, mapas do território, inscrições do tempo, filosofia em formas.

Galeria durante a abertura da exposição. (Foto: Jade Chaia)

Na abertura, com a presença de Benilda Vergilio e Samila Maciel, esse sentido se ampliou. Vergilio afirmou que cada grafismo não pertence apenas ao artista, mas à comunidade que o mantém. Ao ver as obras, é possível escutá-las: elas dão voz à terra, aos ancestrais e ao futuro.

A ideia de que o grafismo indígena seria vestígio do passado é rompida pela exposição de Frutuoso Rocha: trata-se de linguagem viva, em diálogo com o presente global e com lugar legítimo no campo da arte. Sua condição se revela não como “artesanato”, mas como filosofia em desenho e cosmologia em ato.

Benilda e ex-jogador Raí, padrinho da Temporada França-Brasil 2025. (Foto: Alice Arida)

Cinema: crítica do arquivo

Em duas sessões no Cinéma L’Arlequin, na noite de 15 de setembro, a programação aproximou registros etnográficos do passado e criações indígenas contemporâneas, abrindo espaço para crítica e reapropriação.

Fachada do clássico cinema L'Arlequin. (Foto: Alice Arida)

Com 31 minutos, a primeira sessão exibiu Sukande Kasáká | Terra Doente (2025), de Kamikia Kisêdjê e Fred Rahal: uma denúncia do uso de pesticidas no agronegócio que atravessam fronteiras e contaminam a vida, impondo à comunidade a escolha impossível entre abandonar ou lutar pelo território ancestral.

Em seguida, Mundurukuyü, a floresta das mulheres-peixe, de Aldira Akay, Beka Munduruku e Rilcélia Akay, levou o público ao Tapajós: entre mito e presente, o filme explora a cosmologia Munduruku e as relações entre humano e floresta — corpo, memória e metamorfose.

Na segunda sessão, o documentário experimental Le temps danse là où la terre chante (2025), de Ney Pankararu, condensou em 7 minutos a ideia de que o tempo não passa: dança — no sopro do ritual, na poeira que repousa, no som dos maracás. Já Escute: a terra foi rasgada (2023), de Cassandra Mello e Fred Rahal, utiliza o cinema para ecoar o grito dos Yanomami, Munduruku e Mebêngôkre (Kayapó) contra a mineração ilegal, afirmando que não há como desvincular a existência indígena de seu tekoha.

(Foto: Alice Arida)

Como contracampo histórico, foram projetados filmes de Claude Lévi-Strauss e Dina Dreyfus (1935–1936), registros de um olhar estrangeiro que, à época, reduzia povos a imagens silenciosas. Em conversa com o público antes das exibições, Benilda Vergilio e Samila Maciel pontuaram a virada crítica: do objeto observado ao sujeito que interpela — o cinema, aqui, deixa de falar sobre e passa a falar a partir de.

Oficinas: semear futuros

De 16 a 24 de setembro, Benilda Vergilio ministra oficinas e debates com crianças e jovens de escolas parisienses. A proposta é partilhar os grafismos como linguagem do território, mostrando que arte não é adorno, mas filosofia incorporada.

Crianças participante da oficina. (Foto: Jade Chaia)

É uma maneira de afirmar que a terra fala, que o corpo pensa e que o comum se inscreve em linhas que atravessam gerações. A cada traço desenhado é também semente de uma outra relação com a terra, com o corpo e com o comum.

Moda criativa: corpo como cosmos

Paris recebe, em 1º de outubro, um desfile de moda criativa que ultrapassa a passarela: rito de passagem que encerra a programação. As peças autorais de Benilda Vergilio, com impressões têxteis de grafismos Kadiwéu, fundem estética à margem das tendências com a afirmação da persistência do território. As criações, que parecem acompanhar o movimento da natureza, prolongam a memória do ciclo vital; ao vestir, inscreve-se a terra na pele.

Uma das peças autorais apresentadas durante o desfile de moda. (Foto: Benilda Vergilio)

O primeiro desfile ocorre em 29 de setembro, das 8h às 22h, no L’Hôtel de l’Industrie — Place Saint-Germain-des-Prés (6º). O segundo, em 1º de outubro, a partir das 18h, no Centro Cultural La Bellevilloise.

O feminino como força do território

Artista, designer, antropóloga e empreendedora social, Benilda Vergilio entrelaça criação estética e pesquisa como continuidade de uma mesma prática. Samila Maciel, liderança da Aldeia Campina, afirma a voz política das mulheres como fundamento da vida comunitária. Em Paris, Benilda e Samila abriram espaço para que feminino e terra — inseparáveis como raiz e voz, grafismo e cosmo — se apresentem como promessa e processo de futuro.

Confira a galeria de imagens:
(Foto: Alice Arida)
(Foto: Alice Arida)
(Foto: Alice Arida)
(Foto: Alice Arida)
(Foto: Alice Arida)
(Foto: Alice Arida)
(Foto: Jade Chaia)
(Foto: Jade Chaia)
(Foto: Jade Chaia)
(Foto: Jade Chaia)
(Foto: Alice Arida)

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