Paciente vira 'banco de sangue' em técnica que alivia demanda por doações
Máquina recuperadora de células trata e reinfunde o sangue do paciente no Hospital Universitário da Capital
Todos os dias os noticiários alertam para a necessidade de doações de sangue aos hemocentros do País inteiro, quase sempre com os estoques abaixo do ideal. Essa complicada realidade no setor de saúde está diante de uma alternativa que pode representar alívio neste cenário. Trata-se de uma técnica inovadora em uso no Hospital Universitário da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (Humap-UFMS), em Campo Grande, já com ótimos resultados: a autotransfusão de sangue dos pacientes em cirurgias.
O estudo, inclusive, acaba de ser publicado em uma revista científica internacional (acesse aqui) e chamou atenção como uma alternativa segura ao sangue doado. "Nesta técnica, nós transformamos o paciente cirúrgico em seu próprio banco de sangue. Para isso, utilizamos uma máquina chamada recuperadora de células. Ela trata o sangue do paciente durante a cirurgia, garantindo que ele seja reinfundido mantendo o mesmo DNA da pessoa. Isso elimina os vários riscos existentes quando se transfunde o sangue de um doador", explica o cirurgião cardiovascular Dr. Marco Antonio Araujo de Mello, que realiza os testes junto com uma equipe médica.
Conforme o cirurgião, o estudo está em sintonia com o princípio de autonomia do paciente, um dos pilares da bioética, e alinhado com as mais recentes recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) que incentiva a criação de programas de conservação do sangue do próprio paciente, conhecidos como “Patient Blood Management” (PBM). A jornada do médico em busca de aperfeiçoar as técnicas de autotransfusão de sangue é longa. São mais de 15 anos estudando o assunto, dentro de 20 como cirurgião.
De lá para cá, ele se viu desafiado várias vezes e em cada uma delas conseguiu avançar nas pesquisas, por vezes, em movimentos inesperados. Em 2018, coube a ele fazer a cirurgia em um paciente Testemunha de Jeová (que não aceitam a transfusão de sangue). Após o procedimento, feito com o uso do recuperador de células, ou seja, usando o próprio sangue, o paciente apresentou uma inesperada complicação no pós-operatório.
"Nossa equipe buscava uma saída para o paciente que estava perdendo sangue. Ele não poderia receber de terceiros. Foi aí que pensei, vou usar a máquina recuperadora também no pós-cirúrgico. Assim fizemos, recuperamos o sangue que estava se perdendo, tratamos no equipamento e reifundimos. Deu certo, o paciente sobreviveu, recebendo mais uma vez o seu próprio sangue tratado. Nesse susto descobrimos que a técnica é também um colete salva-vidas para o paciente", mencionou.
Mais do que alívio pela vida salva, o ocorrido abriu também uma nova linha dentro da pesquisa, a da autotransfusão no pós-operatório. "Esse é o segundo aspecto inovador dessa técnica, o de potencializar a vontade do paciente de levar o equipamento para o pós-operatório. Inclusive, essa nova classe de recuperadores na qual se enquadra aquela mencionada no artigo tem um modo de pós-operatório automatizado que é possível fazer a autotransfusão nessa fase do pós-operatório", detalha.
O vídeo abaixo mostra o funcionamento da máquina que recupera o sangue do próprio paciente:
Nesse estudo, os médicos se concentraram em minimizar a perda sanguínea do paciente. Dessa forma, em um dos testes, além do uso intraoperatório do recuperador de células, a técnica foi aplicada nas primeiras 24 horas de pós-operatório (desta vez totalmente planejado), conectando o recuperador ao dreno do mediastino na unidade coronariana. "Houve uma recuperação de um volume de 690 ml de hemácias no pós-operatório, além de 1430 ml no intraoperatório," explica o Dr. Mello. "O desfecho clínico do paciente foi muito satisfatório, com alta hospitalar no nono dia de pós-operatório, sem complicações cirúrgicas e, o mais importante, respeitando a sua autonomia", enfatiza.
Alívio aos hemocentros - As vantagens da técnica, como fonte de alívio aos hemocentros, podem ser atestadas observando os números apurados pela equipe médica. "Se um paciente tem um sangramento de 700 ml de sangue no pós-operatório, ela precisaria de três bolsas de sangue pelo menos. Se usarmos a máquina no pós-operatório, ele precisará apenas receber de volta seu próprio sangue", ressalta o médico.
Cada cirurgia cardiáca requer de 2 a 3 bolsas de sangue. Em período recente, o HU realizou 30 cirurgias do tipo, sendo que em 19 foi possível empregar a autotransfusão, um alívio significativo aos bancos de sangue. O emprego da técnica não foi possível em todas, porque nem sempre o hospital dispõe do kit necessário ao funcionamento da máquina recuperadora, fato que expõe a já conhecida carência de investimentos em saúde pública no Brasil.
Cada kit custa R$ 2,9 mil. No conjunto, vem uma tigela de centrifugação, tubo de aspiração, tubos finos e soro anticoagulante. A máquina, de fabricação norte-americana, foi cedida ao hospital sem custo. Porém, cabe à unidade hospitalar adquirir o kit que é individual por paciente, não podendo ser reutilizado.
Para o médico, o uso do equipamento compensa financeiramente e representa um alívio ao sistema de saúde como um todo. Ele lembra que recebendo sangue de doador, o paciente corre riscos de reações alérgicas, inflamatórias e imunológicas. Já a autotransfusão garante a disponibilidade imediata do sangue do próprio paciente, diminui tempo de internação hospitalar, reduz infecções e mortalidade, além de, como já mencionado, diminuir a demanda por sangue alogênico das agências transfusionais, como o Hemosul.
"Também é necessário colocar nesta conta que, além do sangue doado ser escasso, sua transfusão custa caro ao sistema de saúde. Após colher a bolsa do doador é preciso fazer vários testes de doenças como AIDS, hepatites e outras. Ou seja, para tornar uma bolsa de boa qualidade isso tem um custo. Investir na compra do kit compensa muito, além de ser mais seguro ao paciente", enfatiza o médico.
Aperfeiçoamentos - A técnica da autotransfusão ganhou defensores no período da pandemia do novo coronavírus (2020 a 2022), época em que o número de doações de sangue caiu consideravelmente. Atualmente, hospitais do mundo inteiro tentam instituir protocolos para racionar o consumo de sangue, um critério de qualidade hospitalar promovido por agências certificadoras, como a “Joint Commission International”. Um hospital que recebe um selo de qualidade compromete-se a reduzir a prática médica transfusional.
Conforme o médico, é necessário aperfeiçoar o acolhimento aos pacientes no pré-cirúrgico, o que requer inclusive, uma mudança de mentalidade das equipes hospitalares. "Não se pode levar paciente anêmico para a cirurgia. É preciso fortalecê-lo primeiro. O correto é alimentá-lo, dar a ele sulfato ferroso e ferro. Porém, ainda tem muita equipe que recorre ao cômodo ato de transfundir uma bolsa de sangue no paciente para fortalecê-lo. Precisamos abolir este caminho. Está na hora de levarmos muito a sério o programa de gerenciamento de sangue do paciente. O futuro precisa ser esse", valoriza.
Serviço - O Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian (HUMAP) fica localizado na Av. Sen. Filinto Müler, 355, Vila Ipiranga, Campo Grande - MS. O telefone é
(67) 3345-3000. A unidade também está presente nas redes sociais.
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