Geral

Além das grades: Detentas encontram a luz da ressocialização em salas de aula

Série de reportagens do Diário Digital aborda educação dentro do sistema carcerário de Mato Grosso do Sul

|
Victória de Oliveira
Detentas buscam na educação um novo capítulo - (Foto: Luciano Muta)

O recomeço pode vir de diversas formas. Para privados de liberdade do sistema prisional de Mato Grosso do Sul, a ressocialização encontra caminho nas curvas da educação. Do ensino fundamental ao superior, detentas em presídios da Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário (Agepen) apostam as fichas de um novo começo em aulas diárias oferecidas nas instalações dos locais que chamam temporariamente de "moradia".

Um portão separa as alunas das detentas que não demonstraram interesse ou não conseguiram vagas para aulas no Estabelecimento Penal Feminino Irmã Irma Zorzi (EPFIIZ). O espaço preparado para as aulas é nos moldes de uma escola "da vida real". Um pátio com gramado acolhe as estudantes nos horários de intervalo. As salas de ensino possuem paredes claras e apenas um quadro branco para anotações dos professores. As mesas às vezes são dispostas em fileiras, às vezes, em círculo, seguindo a dinâmica das aulas.

Estudantes recebem auxílio dos professores - (Foto: Luciano Muta)

A educação estilo “ensino fundamental” é pensada para incluir as internas que não concluíram nem essa etapa. As disciplinas oferecidas são as mesmas do ensino regular: matemática, português, geografia, história, sociologia, filosofia, física e outras matérias integrantes da grade. Para quem concluiu a etapa fundamental, surge a oportunidade de cursar o ensino médio, como é o caso de Rosana.

A detenta conta que “nas ruas”, como se referem ao “mundo de fora”, não teve a oportunidade de concluir o ensino médio. No EPFIIZ, concluiu o segundo e o terceiro ano do ensino médio durante a pandemia, sem contato com professores. O período de reclusão social chegou até para quem já estava recluso da sociedade. Os cuidados para a não contaminação com a Covid-19 também alcançou as detentas. 

Rosana conta que foi o período mais crítico para as detentas que decidiram apostar as fichas de uma vida pós-crime nas curvas da educação. “Durante a pandemia só vinham os questionários. Foi bem mais difícil. Às vezes, tinha uma dúvida mais técnica que somente um professor conseguia me auxiliar”, relembra.

Porém, assim como em escolas regulares, a união faz a força. As detentas alunas passaram a ajudar uma as outras com os questionamentos dos conteúdos - tudo isso, claro, dentro das limitações de cada uma. Em 2022, as aulas presenciais voltaram a tomar conta do Estabelecimento Penal. Neste mesmo ano, concluiu o terceiro ano já no modelo presencial, com o auxílio de profissionais educadores. “É sempre bom participar das aulas. Um aprendizado é uma oportunidade que a gente não pode deixar perder”, explica.

Detentas possuem acesso a materiais de ensino - (Foto: Luciano Muta)

Em Mato Grosso do Sul, o ano de 2022 registrou aumento no registro de matrículas em penitenciárias quando comparado com 2021. No ano passado, a Agepen contabilizou 3,9 mil detentos e detentas matriculados no ensino regular dentro das unidades prisionais, entre o primeiro e segundo semestres. No mesmo período de 2021, 2,8 mil internos estimaram interesse pela continuidade dos estudos.

O saber abre portas

Além da conclusão do ensino médio, as internas em estabelecimentos penais de Mato Grosso do Sul possuem a oportunidade de pensar na ressocialização voltada para o mercado de trabalho. A Agepen oferece os cursos por meio do convênio firmado entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Kroton e a Fundação Pitágoras/Cogna para implementação de cursos/tecnólogos, na modalidade à distância, em estabelecimentos penais.

Com dados do primeiro semestre de 2022, a Divisão de Assistência Educacional da Agepen informa que 57 detentos cursam graduação superior em Mato Grosso do Sul e um já está na pós-graduação. Além dessa parceria firmada com o CNJ, os cursos de nível superior dentro dos estabelecimentos prisionais acontecem em convênio com universidades particulares, pelo sistema de Educação à Distância (EAD).

Natiela é uma das detentas alunas do EPFIIZ. No Estabelecimento, cursou o ensino médio durante a pandemia. No mesmo local, cursa o ensino superior em Serviços Jurídicos Cartorários e Notariais. “Na realidade, assim, eu não tinha terminado os estudos lá fora. Foi por necessidade de trabalhar, para ajudar minha família. Sempre valorizei a educação, mas aqui dentro consegui abraçar a oportunidade que não tive lá nas ruas”, conta.

Natiela abraçou oportunidade de dar continuidade aos estudos - (Foto: Luciano Muta)

“Nati”, como é reconhecida no local, conta que sempre foi atraída pela leitura. Floresceu a imaginação na biblioteca do Estabelecimento Penal Feminino Irmã Irma Zorzi. “De livro em livro eu falei 'não, vou começar a estudar porque é isso que eu quero. Quero um futuro diferente”, conta. Na visão de Natiela, o aprendizado em sala de aula é colocado para além do tempo presente. “Eu quero trabalhar na área que eu estou fazendo. Fazer uma pós-graduação também”, conta.

Nos últimos dias 10 e 11, 1.589 custodiados da Agepen realizaram as provas do Exame Nacional do Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade (Enem-PPL). Somente na Capital, 536 participantes se inscreveram nas provas. Rosana, que concluiu o ensino regular, foi uma delas. Com sonho de cursar Radiologia, espera que a nota alcançada proporcione vaga em uma universidade já no regime semiaberto, que logo integrará a rotina da detenta em ressocialização.

*Esse conteúdo integra a série de reportagens “Além das grades”, produzida exclusivamente pelo Diário Digital e que aborda educação dentro do sistema carcerário de Mato Grosso do Sul.

Veja Também

Animais domésticos terão direito a RG com cadastro nacional

Procurador da República abre inquérito para investigar ação da PRF

Último fim de semana de 2024 tem espetáculos e shows gratuitos

Câmara aprova fim da contagem de pontos na CNH do motorista que não pagar pedágio