Águas cinzas, plantas verdes e clima leve: ciência mostra benefícios do reúso da água doméstica
Experimento de universidade da Capital faz água usada nutrir plantas e alivia sistema de esgoto
O jardim de plantas ornamentais verdes e com flores na cor laranja chama atenção de quem chega à casa da professora Márcia Paulo, no Bairro Monte Castelo, em Campo Grande (MS). A mera observação já faz suspirar de alegria. Porém, a existência daquele canteiro tem relevância muito além da contemplação. Trata-se de ponto importante em pesquisa científica sobre o reúso de águas domésticas na Capital.
As helicônias e beris do canteiro de Márcia absorvem a água que vem de lavatórios, banhos e lavanderias (as chamadas águas cinzas claras) através de um experimento implantado em 2011 por pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Para as plantas receberam as águas cinzas foi preciso construir um sistema, composto por encanamento e câmaras subterrâneas.
Os canos de esgoto levam a água cinza da casa até estas câmaras recheadas de pedra brita, argila e solo na superfície. A parte do encanamento que fica dentro da câmara tem vários furos de modo a permitir que a água se espalhe pelas camadas de preenchimento e, posteriormente, seja absorvida pelas raízes das plantas, e eliminada por evapotranspiração.
Essa técnica de saneamento ecológico é chamada de 'wetlands' que nada mais são que sistemas alternativos e sustentáveis para tratamento de água e esgoto. Esses sistemas não usam elementos eletrônicos ou produtos químicos para o tratamento dos líquidos.
Na casa de Márcia, o experimento comprova que a água doméstica hidrata as plantas muito bem e as mantém verdes em época de seca, de modo que a família economiza recursos hídricos potáveis.
"Eu me sinto muito privilegiada de ter algo assim em casa. Cria uma grande facilidade, pois a plantas recebem a água da casa sem que a gente tenha trabalho. A presença das plantas, além de embelezar o ambiente, cria um clima melhor, mais fresco, mais gostoso", enaltece a moradora.
Segundo ela, a instalação do sistema não custou caro para a família e nunca houve grandes problemas para manutenção que é muito rara e barata. "Além disso, vivemos a satisfação de estarmos ajudando a aliviar o sistema de esgoto e contribuindo para estudos científicos", afirma.
De fato, o endereço é um ponto já bastante visitado por pesquisadores que idealizaram o sistema e frequentemente recorrem ao local para retirar amostras da água e fazer os testes de laboratório.
Vários destes estudos já têm resultados publicados em teses de doutorados na área ambiental. Uma delas assinada pelo engenheiro ambiental Jhonatan Barbosa da Silva, por exemplo, atesta que "o uso da água cinza para desenvolvimento de espaços verdes em áreas urbanas é bastante promissor, pois melhora o microclima local, beneficiando a saúde pública, proporcionando conservação da água e redução no consumo de energia."
Conforme os pesquisadores da UFMS, 70% da água descartadas pelas residências é água cinza, ou seja, oriunda de lavanderias, lavatórios, chuveiros e mesmo cozinha (nesta caso considerada água cinza escura por ser mais pesada em resíduos). Os outros 30% são da descarga do banheiro.
Necessidade de purificar - Coordenadora do grupo de pesquisa em Saneamento Focado em Recursos do CNPQ, a professora pós-doutora Paula Loureiro Paulo é a principal responsável pelo experimento científico e orientadora de várias teses de doutorado. Ela conta que começou a pesquisar o tema em busca de soluções para a necessidade de purificar a água cinza urbana.
"Campo Grande é muito urbanizada, cheia de casas e calçadas. Sinto que temos ilhas de calor muito fortes. Podemos encontrar na própria natureza maneiras de vivermos melhor", explica.
Paula Loureiro coordenou pessoalmente a implantação do experimento na casa de Márcia. O início foi numericamente controlado. Na residência onde vivem três pessoas, tudo foi medido e anotado, quantidade de água consumida, produtos usados na limpeza e outros detalhes.
Conforme a pesquisadora, a construção do sistema de evapotranspiração e tratamento de água cinza (EvaTAC) na casa de Márcia representa economia para a família, mas, por enquanto o principal benefício não é o financeiro e sim outros também relevantes, tais como paisagismo, bem-estar, microclima e conservação da água.
"Sobre a irrigação de jardim mensuramos 11m3 por pessoa ao ano. A tarifa de água e esgoto é de aproximadamente R$ 12,22/m3 na faixa de consumo desta família. Assim, temos uma economia de R$ 135,6 por ano. Nosso cálculo é feito por pessoa/ano, ou seja, para calcular pra residência toda, multiplicar por 3 pessoas (R$ 410,00). Além da economia direta com água e esgoto, temos a economia com o IPTU ecológico de 4% de desconto para sistema de captação de água da chuva e/ou de reuso de água", detalha.
De acordo com Paula, o EvaTAC instalado na residência do Bairro Monte Castelo tem um diferencial entre outros modelos similares já construídos no planeta. "O que temos de inédito é a câmara de digestão horizontal acoplada em seu interior, para polimento do efluente, a CEvaT é seguida de um wetland construído de fluxo horizontal subsuperficial (CW-FHSS). A configuração proposta visa eliminar o tanque de sedimentação ou fossa séptica, que causam o problema de odor e a necessidade de manutenção excessiva", detalha tecnicamente.
Ainda considerando as questões técnicas, a professora explica que a escolha do meio filtrante é um fator importante, pois é este que dará suporte para as raízes das plantas e desenvolvimento de biofilme, garantindo as interações no ecossistema que se forma no leito do sistema.
"Pode-se usar areia grossa, pedrisco, brita, zeólitas, materiais plásticos, entre outros, sendo que a escolha depende da configuração escolhida e dos parâmetros de interesse na remoção", comenta.
Mais do que batalhar pelo desenvolvimento científico de experimentos que possam purificar águas cinzas urbanas, Paula Loureiro também luta para implantar uma nova mentalidade nos profissionais da construção civil. Ela sugere que arquitetos e engenheiros, ao elaborarem projetos para novas edificações, levem em conta a importância de uma tubulação separada para as águas cinzas.
"Isso evita que mais tarde os moradores tenham que mexer no imóvel para fazer a adaptação, o que sai mais caro e gera transtornos de uma nova obra. Então, se as entidades ligadas à construção civil trabalhassem essa mentalidade todos ganharíamos com isso", opina.
Banheiro experimental da UFMS - Antes de chegar à casa de Márcia, os estudos sobre o reuso das águas cinzas começaram na UFMS. Lá foi criado um banheiro experimental. O local de testes tem também uma lavanderia de roupas.
A água descartada da máquina de lavar, chuveiro e lavatório é aproveitada no sistema de tratamento com soluções baseadas na natureza da UFMS. O local é frequentados pelos próprios pesquisadores, porém, todo movimento feito no banheiro tem finalidade científica.
Dentro do ambiente, há várias placas nas paredes com indicações sobre seu uso correto. Todo recurso usado preciso ser devidamente mensurado. A ordem é anotar nas planilhas, que são várias.
Cada equipamento tem um hidrômetro individual. De modo que toda água que vai para experiência é quantificada. Além disso, é preciso colocar nas tabelas a quantia certa de cada produto consumido, seja para lavar roupas ou higiene pessoal.
Uma pequena balança está sempre de prontidão no banheiro experimental. Isso porque é necessário informar o que e qual quantidade de produtos químicos a água cinza da pesquisa está recebendo. As informações são fundamentais para testar a eficiência do sistema.
"Quem vai usar o banheiro ou lavanderia tem que pesar todos os produtos que serão consumidos nesta área de pesquisa, como o creme dental que será usado na escovação ou o sabão em pó que será colocado na máquina de lavar roupas", detalha a acadêmica de engenharia química Heloysa Vicente participante do grupo 'Saneamento Focados em Recursos'.
Plantas pantaneiras - Da mesma forma que na casa de Márcia, foram construídas câmaras que estão recheadas com argila, brita e solo. Porém, na superfície estão plantadas espécies variadas do Pantanal que, após a filtragem natural, absorvem a água cinza vinda do banheiro experimental.
Como trata-se de um experimento maior foram instaladas ainda duas bombonas através das quais os pesquisadores recolhem amostras da água para testes.
As plantas estão crescendo verdes e com aparência muito saudável. "A água cinza tem nutrientes", observa a também integrante do grupo de pesquisa ‘Saneamento Focado em Recursos’, a doutoranda em tecnologias ambientais e engenheira química Virgínia Ly Lito.
Segundo ela, vários cientistas de pós-graduações diversas na área ambiental trabalham no experimento, onde colhem subsídios para suas pesquisas.
Esgoto é recurso - Virgínia Ly Lito é engenheira química e despertou para os experimentos com o esgoto quando cumpriu período de estudos em uma universidade da Alemanha. "Na Europa de modo geral, a mentalidade é outra. Eles estão cientes de que esgoto não é resíduo, mas sim recurso. Fiquei muito estimulada a trabalhar nessa linha", comenta.
Tanto é que ela se voltou para suas origens pantaneiras (ela nasceu em Corumbá) e desenvolve trabalho de grande relevância ambiental junto a ribeirinhos em Ladário (MS) que vivem às margens do Rio Paraguai. Trata-se de uma comunidade localizada na APA Bahia Negra, área de proteção ambiental do Pantanal, muito usada para pesquisas e visitação científica.
Virgínia liderou a execução de um projeto que construiu tanques de evapotranspiração para substituir fossas comuns, como forma de reduzir impacto no meio do ambiente no local que não tem saneamento básico. Os tanques foram construídos com paredes de tijolos. Na base, há pedras e entulhos e ainda uma câmara de fermentação feita com pneus de descarte, coberta por camadas de pedra brita, areia e solo.
Na superfície dos tanques foram plantadas bananeiras. Os dejetos que iriam para uma fossa comum e poderiam contaminar o lençol freático ou mesmo o Rio Paraguai, agora viram nutrientes para plantas. Aos poucos, as raízes buscam água e nutrientes no solo, completando o processo de tratamento dos dejetos.
"O sistema é cuidadosamente dimensionado. O sistema prova que resíduos podem ser recursos dependendo de como a gente vai trabalhar. É um estudo de muitos anos que pretendemos continuar", afirma.
A pesquisadora viaja periodicamente para Ladário onde recolhe amostras do lodo dos tanques de evapotranspiração e traz ao laboratório da UFMS, em Campo Grande, onde faz as análises do material. O ambiente é controlado. A temperatura deve ser a mesma das condições naturais do material analisado.
Ela trabalha em temperaturas ideias para bactérias, entre 34º e 35º C. "Até aqui os exames mostram que a degradação do esgoto é muito boa. Ou seja, é um sistema eficiente para minar possibilidades de poluição. Além disso, a manutenção dele é muito baixa, o que facilita para a comunidade", analisa.
As águas cinzas e as leis - Em Abril de 2023, ou seja, há quase um ano, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, sancionou a Lei 14.546, de 2023, que estabelece medidas para evitar o desperdício e para aproveitar as águas de chuva e as cinzas.
O texto estabelece que a União deve estimular o uso das águas de chuva e a reutilização não potável das águas cinzas em novas edificações e nas atividades paisagísticas, agrícolas, florestais e industriais. De acordo com a Lei 14.546, de 2023, as águas de chuva e as águas cinzas precisam passar por processo de tratamento que assegure uma utilização segura.
Em Campo Grande (MS) não existe lei ou norma específica mencionando as águas cinzas. Em resposta a um questionamento do Diário Digital a respeito do assunto, a prefeitura da Capital enviou o seguinte texto:
"A Semadur (Secretaria do Meio Ambiente( informa que não identificou nenhuma legislação municipal específica sobre o reuso de águas cinzas. A Sesau orienta que águas servidas devem ser descartadas na rede de esgoto ou fossas, conforme previsto no Código Sanitário do município. Desta forma, ao que compete à vigilância em saúde e ambiental, não há nenhum regramento que versa sobre essa temática."
A concessionária Águas Guariroba, responsável pelo abastecimento de água e esgoto na Capital, também foi consultada. A empresa informou que recomenda o reuso da água cinza.
"Como medida prática e de incentivo a população, a concessionária reutiliza a água usada na lavagem de filtros na Estação de Tratamento de Água Guariroba. Toda a água utilizada na lavagem de filtros volta para as etapas de tratamento, sendo assim, nenhuma gota é dispensada. Com essa medida, são economizados cerca de 40 milhões de litros de água por mês", escreveu a empresa.
A concessionária disse não ter indicadores específicos sobre descarte de água cinza, pois todo o descarte feito nas residências vai para as redes de esgoto ou drenagem. Dessa forma, não seria possível apontar o volume específico para água cinza.
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